Venha ver o pôr-do-sol
Venha ver o pôr-do-sol, Lygia Fagundes Telles
LEIA ESTE CONTO DE LYGIA. UMA OBRA PRIMA DE SUSPENSE!!! VOCÊS VÃO AMAR!
ESSA É UMA QUE VALE A PENA SER LIDA! UMA IMORTAL!
ESSA É UMA QUE VALE A PENA SER LIDA! UMA IMORTAL!
Lygia Fagundes Telles
(Brasil, 1923)
Venha ver o pôr-do-Sol
Ela subiu sem
pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando,
modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios.
No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro,
algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única
nota viva na quietude da tarde.
Ele a esperava encostado a uma
árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão azul-marinho, cabelos
crescidos e desalinhados, tinha um jeito jovial de estudante.
- Minha querida Raquel.
Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos.
- Veja que lama.
Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. que idéia,
Ricardo, que idéia! Tive que descer do táxi lá longe, jamais ele
chegaria aqui em cima.
Ele sorriu entre malicioso e ingênuo.
- Jamais, não é?
Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa
elegância... quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete
léguas, lembra?
- Foi para me dizer isso que você me fez subir até aqui? - perguntou ela, guardando o lenço na bolsa. Tirou um cigarro. - Hem?!
- Ah, Raquel... -
e ele tomou-a pelo braço, rindo. - Você está uma coisa de linda. E
fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado... Juro que eu
tinha que ver ainda uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume.
Então? Fiz mal?
- Podia ter escolhido um outro lugar, não? - Abrandara a voz. - E que é isso ai? Um cemitério?
Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem.
- Cemitério
abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, desertaram todos. Nem os
fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo -
acrescentou, lançando um olhar 'às crianças rodando na sua ciranda.
Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do companheiro.
- Ricardo e suas idéias. E agora? Qual é o programa?
Brandamente ele a tomou pela cintura.
- Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí. Vamos entrar e te mostrarei o pôr-do-sol mais lindo do mundo.
Perplexa, ela encarou-o um instante. E vergou a cabeça para trás numa risada.
- Ver o
pôr-do-sol!... Ah, meu Deus... Fabuloso, fabuloso!... Me implora um
último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para
esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o
pôr-do-sol num cemitério...
Ele riu também, afetando encabulamento como um menino em falta.
- Raquel, minha
querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te
levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso
fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que
vive espiando pelo buraco da fechadura...
- E você acha que eu iria?
- Não se zangue,
sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei, se
pudéssemos conversar um pouco numa rua afastada... - disse ele,
aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos.
Ficou sério. Aos poucos, inúmeras rugazinhas foram-se formando em redor
dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se
aprofundaram numa expressão astuta: não era nesse instante tão jovem
como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem
deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio
desatento. - Você fez bem em vir.
- Quer dizer que o programa... E não podíamos tomar alguma coisa num bar?
- Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.
- Mas eu pago.
- Com o dinheiro
dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e
muito decente, não pode haver um passeio mais decente, não concorda
comigo? Até romântico.
Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.
- Foi um risco
enorme, Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber que tive meus
casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero só ver se alguma das suas
fabulosas idéias vai me consertar a vida.
- Mas me lembrei
deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo.
Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja,
completamente abandonado - prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos
gonzos gemeram. - Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que
estivemos aqui.
- É um risco enorme, já disse. Não insista nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não suporto enterros.
- Mas enterro de
quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há
séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram,
que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo.
O mato rasteiro
dominava tudo. E não satisfeito de ter-se alastrado furioso pelos
canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrara-se ávido pelos rachões
dos mármores, invadira as alamedas de pedregulhos enegrecidos como se
quisesse com sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos
vestígios da morte. Foram andando vagarosamente pela longa alameda
banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha
música feita ao som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos.
Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. As
vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os
pálidos medalhões de retratos esmaltados.
- É imenso, hem? E
tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, é deprimente -
exclamou ela, atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de
cabeça decepada. - Vamos embora, Ricardo, chega.
- Ah, Raquel,
olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que
eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da noite,
está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa incerteza. Estou-lhe dando um
crepúsculo numa bandeja e você se queixa.
- Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre.
Delicadamente ele beijou-lhe a mão.
- Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.
- É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais.
- Ele é tão rico assim?
- Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro...
Ele apanhou um
pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se
estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa,
repentinamente ficou envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as
rugazinhas sumiram.
- Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?
Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo.
- Sabe, Ricardo,
acho que você é mesmo meio glingue-glongue... Apesar de tudo, tenho às
vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele. Palavra que quando penso
não entendo até hoje como agüentei tanto. Um ano!
- É que você tinha lido A Dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora?
- Nenhum - respondeu ela franzindo os lábios. Deteve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: - A minha querida esposa, eternas saudades. - Fez um muxoxo. - Pois sim. Durou pouco essa eternidade.
Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.
- Mas é esse
abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor
intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja - disse,
apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de
dentro da fenda - o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo,
ainda virão as raízes, depois as folhas... Esta a morte perfeita, nem
lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.
Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.
- Está bem, mas
agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto
tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim.
- Deu-lhe um beijo rápido na face. - Chega, Ricardo, quero ir embora.
- Mais alguns passos...
- Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! Olhou para trás - Nunca andei tanto Ricardo, vou ficar exausta.
- A boa vida te
deixou preguiçosa? Que feio - lamentou ele empurrando a para a frente
Dobrando esta alameda fica o jazigo da minha gente e de lá que se vê o
pôr-do-sol.- E tomando a pela cintura. Sabe, Raquel, andei muitas vezes
por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos
os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha
onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e
ficávamos por ai, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas
estão mortas.
- Sua prima também?
- Também. Morreu
quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns
olhos... Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus.
Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas... Penso que toda
a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, tão
brilhantes.
- Vocês se amaram?
- Ela me amou. Foi a única criatura que... - Fez um gesto. - Enfim, não tem importância.
Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o.
- Eu gostei de você, Ricardo.
- E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?
Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.
- Esfriou, não? Vamos embora.
- Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.
Pararam diante de
uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a
envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu
quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes
enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do
cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que
adquiria a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um
tosco crucifixo de madeira. Entre Os braços da cruz, uma aranha tecera
dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapo. de um
manto que alguém colocara sobre os ombros de Cristo. Na parede lateral, à
direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada
de pedra, descendo em caracol para a catacumba.
Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naquelas ruínas.
- Que triste que é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?
Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira.
- Sei que você
gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas, sinais da
minha dedicação, certo? Mas já disse que o que mais amo neste cemitério
e precisamente este abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo
foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta.
Ela adiantou-se e
espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na
semi-obscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das
quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento.
- E lá embaixo?
- Pois lá estão
as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó - murmurou
ele. Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no
centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse
puxá-la. - A cômoda de pedra. Não é grandiosa?
Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se para ver melhor.
- Todas essas gavetas estão cheias?
- Cheias?... -
Sorriu. - Só as que têm o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o
retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe - prosseguiu ele, tocando
com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado, embutido no centro da
gaveta.
Ela cruzou OS braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.
- Vamos Ricardo, vamos.
- Você está com medo.
- Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio!
Ele não
respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu
um fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado.
- A priminha
Maria Camila. Lembro até do dia em que tirou esse retrato. Foi duas
semanas antes de morrer... Prendeu os cabelos com uma fita azul e veio
se exibir, estou bonita? Estou bonita?... - Falava agora consigo mesmo,
doce e gravemente. - Não, não é que fosse bonita, mas os olhos... Venha
ver, Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos seus.
Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada.
- Que frio faz aqui. E que escuro, não estou enxergando...
Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira.
- Pegue, dá para ver muito bem... - Afastou-se para o lado. - Repare nos olhos.
- Mas está tão
desbotado, mal se vê que é uma moça... - Antes da chama se apagar,
aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente. -
Maria Camila, nascida em vinte de maio de mil e oitocentos e
falecida... - Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel. - Mas
esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! Seu
menti...
Um baque metálico
decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta.
Voltou a olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás
da portinhola fechada. Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso.
- Isto nunca foi o
jazigo da sua família, seu mentiroso! Brincadeira mais cretina! -
exclamou ela, subindo rapidamente a escada. - Não tem graça nenhuma,
ouviu?
Ele esperou que
ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu
uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás.
- Ricardo, abre
isto imediatamente! Vamos, imediatamente! - ordenou, torcendo o trinco.
- Detesto este tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no
que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida!
- Uma réstia de
sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na porta. Depois,
vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr-do-sol
mais belo do mundo.
Ela sacudia a portinhola.
- Ricardo, chega,
já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente! - Sacudiu a
portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por
entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um
sorriso. - Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir
mesmo, vamos, abra...
Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque.
- Boa-noite, Raquel.
- Chega, Ricardo!
Você vai me pagar!... - gritou ela estendendo os braços por entre as
grades, tentando agarrá-lo. - Cretino! Me dá a chave desta porcaria,
vamos! - exigiu, examinando a fechadura nova em folha. Examinou em
seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se.
Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um
pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou
os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando. - Não, não...
Voltado ainda para ela, Ricardo recuou até a porta e abriu os braços. Foi puxando as duas folhas escancaradas.
- Boa-noite, meu anjo.
Os lábios dela se
pregavam um ao outro, como se entre eles houvesse cola. Os olhos
rodavam pesadamente numa expressão embrutecida.
- Não...
Guardando a chave
no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve silêncio, o som
dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente,
o grito medonho, inumano:
- NÃO!
Durante algum
tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de
um animal sendo estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais
remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que
atingiu o portão do cemitério, lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou
atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado. Acendeu
um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de
roda.
1958
In “Mistérios”, Nova Fronteira,
4ª Edição, 1981.
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