"A Verdade vos fará livre - Análise do samba enredo da mangueira 2020
A VERDADE VOS FARÁ LIVRES
Grêmio Recreativo Escola de Samba ESTAÇÃO PRIMEIRA DE MANGUEIRA (ou simplesmente
Mangueira) é uma tradicional escola de samba brasileira da cidade do Rio de Janeiro. Neste ano de 2020, ela levará para a
avenida um samba-enredo belíssimo,
porém polêmico, pois versa sobre Jesus Cristo, que abalou estruturas e
despertou a ira dos intolerantes e poderosos do seu tempo.
Muitos anos
se passaram. Cristo foi morto e ressuscitou, mas alguns ainda não entenderam a
sua mensagem, como ironiza o “Cristo” que foi personificado no Eu lírico da letra do samba-enredo,
ao perguntar: “Mas será que todo povo entendeu o meu recado?”
Para começo de resenha, vale dizer que
tanto a letra quanto a melodia do samba são impactantes e que o mesmo é uma
mensagem ao mesmo tempo reveladora e profética. Escrito em primeira pessoa a
mensagem soa “empoderada”, ganhando status de reza!
Um vocativo “Senhor,
tende piedade” - dá inicio ao samba, num verso que faz intertextualidade com
refrões de músicas do ato penitencial
católico. Esta estrofe clama ao céu, reconhecendo a maldade humana, e no refrão
vem a resposta misericordiosa do Cristo, que sempre condena o pecado, mas
perdoa o pecador. Ele garante que está do lado da Mangueira e do samba, mesmo
que a acusem de mil pecados (como está acontecendo nas redes sociais, pois
muitos julgam sem conhecer e condenam por ignorância!)
“Senhor,
tenha piedade
Olhai
para a Terra
Veja
quanta maldade... ”
Ao contrário do que dizem, o samba não é
nenhuma blasfêmia, ele
está fundamentado em versículos bíblicos e na realidade nua e crua que
presenciamos no cotidiano das favelas (mesmo que pela TV!). Assim, o refrão tem
uma força inexplicável, capaz de comover e de nos fazer cantar, com um
sentimento de pertença a esse Cristo que se fez um de nós, por amor. A única
coisa que condeno no refrão é que ele peca contra a uniformidade
do tratamento, usando você (tenha/veja) e vós (olhai),
para a mesma pessoa. Mas como se trata de uma canção popular, o equívoco pode
ser interpretado como marca de oralidade, o que, aliás, acontece muito nas
“rezas” onde se misturam frequentemente, o tu e o vós ou até como licença
poética para facilitar o canto.
“Eu
sou da Estação Primeira de Nazaré
Rosto
negro, sangue índio, corpo de mulher
Moleque
pelintra no buraco quente
Meu
nome é Jesus da Gente ”
Jesus
sempre teve uma opção preferencial pelos pobres, pelos oprimidos e pelos
pecadores. Ele nasceu pobre, sofreu perseguição e injustiça, por pregar a
verdade. Ele não tinha preconceito! Em sua trajetória pela Terra, esteve com
prostitutas, pescadores leprosos cobradores de impostos, etc. Ele veio para que
todos tivessem vida digna, vida em abundância, segundo (João10, 10).
Quanto ao Eu lírico dizer que tem “corpo de mulher” é uma forma de dizer
que os dois sexos estão incluídos no grande propósito de Deus para a Humanidade.
Uma metáfora, que se fundamenta na mensagem do Evangelho. Está escrito no Gênesis que Deus criou o homem
à sua imagem e semelhança, ou seja, criou toda a raça humana, pois os
criou homem e mulher, iguais em dignidade e graça!
Por outro lado, sempre aprendemos na
catequese que devemos ver o Cristo no nosso próximo, para que possamos amá-lo
como Cristo nos amou. Então, Cristo sofredor é o moleque que vive no Buraco Quente,
um dos núcleos populacionais que formam o complexo do Morro
de Mangueira, Jesus tem sangue índio, tem rosto negro, é o Jesus da
gente. Que belo!...Pra mim, esse samba-enredo soa como uma liturgia!
“Nasci
de peito aberto, de punho cerrado
Meu pai carpinteiro desempregado
Minha mãe é Maria das Dores Brasil
Enxugo o suor de quem desce e sobe ladeira
Me encontro no amor que não encontra fronteira
Procura por mim nas fileiras contra a opressão
Meu pai carpinteiro desempregado
Minha mãe é Maria das Dores Brasil
Enxugo o suor de quem desce e sobe ladeira
Me encontro no amor que não encontra fronteira
Procura por mim nas fileiras contra a opressão
E
no olhar da porta-bandeira pro seu pavilhão...”
Todos precisam saber que o Cristo
vivo não quer a opressão, seu mandamento é o amor sem fronteiras! Porém, muitos
ainda não conhecem esse mandamento e, ao mesmo tempo que ostentam ser cristãos,
erguendo bonitas estátuas do Cristo, ou rendendo-lhe homenagens em rezas e
versos, “cravejam” seu corpo de balas, assassinando sem piedade, principalmente
os negros e favelados, que o próprio Cristo diz ser ELE. E nesse contexto de
injustiça e violência, a mensagem de Cristo se faz esperança para o povo.
Ao alertar o povo sobre os “falsos
profetas”, o Samba da Mangueira assume um tom profético e apresenta em sua
letra traços da oralidade que identificam o grupo ao qual se dirige. O Eu
lírico alerta/clama e diz ter fé em sua gente oprimida:
Favela,
pega a visão
Eu faço fé na minha gente
Que é semente do seu chão”
Eu faço fé na minha gente
Que é semente do seu chão”
O Eu lírico se dirige à favela e usa
uma gíria “pega visão”, ou seja, “toma tenência”, “acorda”, o Salvador não virá
de arma na mão. Nesse ponto percebe-se uma sutil alusão, levando em conta o
duplo sentido da palavra messias, que pode significar tanto o Cristo como um
“salvador da pátria”.
“Do
céu deu pra ouvir
O desabafo sincopado da cidade
Quarei tambor, da cruz fiz esplendor
E ressurgi no cordão da liberdade”
O desabafo sincopado da cidade
Quarei tambor, da cruz fiz esplendor
E ressurgi no cordão da liberdade”
O desabafo contido nesse samba
enredo ecoou no céu, diz o Eu Lírico. E eu digo que é realmente uma reza forte
esse samba!. A mensagem vai além do significado das palavras. As alegorias, o
desenrolar do enredo, a malemolência, o grito do puxador do samba extravasam um
grito de denúncia, de protesto de e alerta.
E isso faz o Cristo “ressurgir”, no
cordão da liberdade, ao lado daqueles que buscam a verdade e não se compactuam
nem conformam com a opressão/situação!
Cristo é a Verdade. Seu mandamento é o AMOR. Percebe-se
facilmente a intertextualidade do título do enredo da Mangueira com o versículo
bíblico “... conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” (Jo8, 32).
Então, quem tiver ouvidos para ouvir sem deturpar, ouça! E “a verdade vos fará livre”, com certeza!
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